domingo, 28 de agosto de 2011

Protagonista

Ele gostava de como Ana preparava seu suco de limão. Que não era amargo nem doce. Perambulava entre o desejo e a indiferença. Ele gostava de ver Ana colocar quatro pedras de gelo, a ponto de quase transbordar, e vir equilibrando o copo até o computador.

― Como anda o livro? ― perguntou ela, enquanto tentava enxergar a tela.

― Fluindo...

― Lê um trecho pra mim?

― Ah, você sabe que eu detesto isso. Não tem nada muito definitivo ainda. Eu vou moldando o texto com o tempo ― ele deu um gole na limonada.

― Então me fala da história.

Sérgio abriu um sorriso. Ele gostava de falar sobre seu romance, realmente gostava, mas sabia que o interesse da esposa era forjado. Ana simulava uma admiração absurda para demonstrar cumplicidade e fazer o marido mais feliz. E quase sempre funcionava.

― Bom... É a história dessa menina, Luíza, que acaba se envolvendo com um homem mais velho e descobre que o cara matou uma pessoa no passado. Só que um belo dia toda a sujeira vem à tona, com uns criminosos bem barra pesada que aparecem na vida do casal. E Luíza está tão apaixonada e cega que começa a cometer uma série de crimes com o amante. ― ele respirou fundo ― O problema é que eu não sei como terminar. Quer dizer... Eu sabia como terminar, mas tive uma ideia diferente pro final. E isso tem me incomodado.

― Como era o final?

― Ah, ela tentaria sair desse submundo em que se meteu, mas não conseguiria.

― Ela iria morrer?

― Talvez. Mas agora tive uma ideia mais interessante. Vê se não é cafona... Ela entraria tão fundo, mas tão fundo na criminalidade, que acabaria matando o próprio amante.

― Eu prefiro que ela morra.

― Por quê?

― Não sei. Como é essa Luíza? Tipo... Fisicamente?

― Ela é loira, alta, tem os cílios longos, boca carnuda e os olhos amarelados.

― Ah, claro. ― Ana saiu de perto do computador, pisando forte, e começou a lavar a louça na cozinha, enquanto berrava de lá ― Claro que a protagonista da sua história seria o completo oposto da sua esposa.

― Como é que é? ― Sérgio levantou, seguindo Ana.

― Ah Sérgio, você não tá vendo? Você criou uma ninfeta! Uma ninfeta com todas as qualidades que eu não tenho. E fica escrevendo cenas eróticas pra satisfazer seu desejo reprimido ― sua voz começava a atingir um tom ameaçador.

― Eu não acredito que você está com ciúmes de uma personagem!

― Estou! Quer saber? Estou morrendo de ciúmes da Luíza! E de como ela é brutalmente mais bonita, charmosa e interessante que eu.

― Mas isso é óbvio! ― Sérgio falava rindo, pra deixar claro o absurdo que era brigar por esse tipo de coisa ― Ela foi criada pra ser interessante. Ela não existe.

― Não interessa! Pra mim, você não tem coragem de cometer um adultério de verdade e fica usando seus personagens. Chega a dar nojo. Ou pena.

― Mas Ana... Eu sou um escritor.

― Você não é bosta nenhuma! ― ela largou a louça, deu um giro de 180 graus e encarou Sérgio de forma assombrosa e cinematográfica ― Você é um professor de português que toda noite brinca de ser escritor. Você não é um escritor, Sérgio...

― Eu não vou discutir isso com você. ― ele voltou a sentar no computador, e continuou de lá ― Pra você ter uma ideia, nem cena erótica meu romance tem. Eu sempre tomo o cuidado de interromper a narração antes que as coisas esquentem. Vou até a moça ficar de sutiã e então aperto o “enter” e começo um novo parágrafo.

Ana não disse mais nada. Terminou de guardar a louça em silêncio e foi para o quarto, com os chinelos arrastando arrependimento. Não aguentou cinco minutos de televisão. Voltou ao computador. Sérgio fingia escrever.

― Desculpa. Acho que fui um pouco imbecil.

― Vou ser obrigado a concordar. ― E os dois riram, fazendo do riso a bandeira branca.

― Não leva a sério essas coisas que eu falo.

― Eu realmente não sei no que acreditar. No fundo acho que você tem essas explosões de sinceridade e depois se arrepende...

― Não. Não é verdade. Isso não é sinceridade. Eu só tento te ferir...

― Você consegue.

― Eu sei. Desculpa, tá?

Mas esse carinho culpado era uma das coisas que Sérgio mais abominava na esposa. Essa capacidade de falar o que quer, se arrepender e vir toda melindrosa, arrastando os dedos na nuca e pedindo perdão enquanto tenta roubar meia dúzia de beijos. E a partir daí Sérgio era obrigado a parar o que estava fazendo e cumprir seu papel. Porque sabia que a mulher não aceitaria qualquer sinal de desprezo. E porque precisava parecer interessado e apaixonado, o que fazia muito bem. Tão bem que Ana era frequentemente surpreendida, cinco minutos depois, com as pernas suspensas na cama e os olhos fechados de prazer.

Naquele dia ele deixou um capítulo inacabado e foi ou arrastando ou sendo arrastado para o quarto. A televisão ainda ligada. Prendeu os cabelos de Ana com as mãos e foi percorrendo seu pescoço com a língua até parar diante da camisola cor de arranque-me. E arrancou. Cuidadosamente, mas demonstrando desejo. O sutiã branco, que tanto lhe agradava, não durou vinte segundos.

Com o tempo, a casa foi ficando pequena demais para Ana e Luíza. Sérgio escrevia cada dia mais e com mais empolgação. Parece que a história finalmente estava tomando forma. E o que antes se resumia às noites de tédio, agora aparecia em cada intervalo ou refeição. Ana caminhava pelos corredores trombando em olhos amarelados, se enroscando em cabelos loiros e afundando em bocas carnudas. Por vezes chegava a ouvir a voz de Luíza, saindo de algum lugar entre a tela do computador e a cadeira.

Já não tinha mais suco de limão.

E o romance parecia não ter fim, de modo que Ana acabou esgotada. Disse que iria embora, que a situação estava insustentável. Sérgio pediu, explicou, ouviu, não entendeu, e acabou permitindo que sua mulher deixasse a casa com uma mala de viagem e a promessa de voltar durante a semana pra buscar o resto das roupas.

Foi Ana quem pediu a separação, mas ela tinha certeza que, na verdade, tinha sido expulsa de sua própria casa por uma personagem. Quando estava saindo, de mala na mão, parou no meio da rua, olhou para a janela da sala e percebeu uma silhueta feminina na cortina. Era Luíza. Magra, alta e cheia de conexões criminosas, ela consolava Sérgio que, de cabeça baixa, parecia chorar. Olhando bem, ele poderia estar só tirando os sapatos. Foi quando Ana ouviu um berro estridente de dor e graça. Agora percebia com clareza: o marido e a protagonista estavam às gargalhadas. Rindo dela. Ou será que eram lágrimas? Não, gargalhadas.

3 comentários:

Jéssica Araujo disse...

Muito bom Bill escrevendo sempre melhor parabens

Anônimo disse...

N estou conseguindo lembraro o nome daquele outro blog seu, que você excluiu antes do a morte me cai bem mas n estou conseguibndo lembrar. Me adjuda aê

sablofe disse...

Frenesi. (: